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quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

sin título




O cachorrinho saiu caminhando pela avenida, desviando das vans, pelos vãos.Pensava que voava, não ia por onde andava...
Deu uma boa tratada no pelo, e foi pelos sacos de lixo, procurando rango. Foi cheirando cus, e procurando alguém que o esperava
Os cachorrinhos choravam no brique, detestando aquilo tudo
De olhar tocar gemer e sair; sem comprar, sem levar, sem se dar conta.

Um começou a latir pro Rodrigo loco lá na esquina,
O pastor do delegado bradou daqui do meu lado,
Já era a matilha toda da Santana falando bobagens:
-Olha o Rodrigo loco, que mongolão!
- Ele come aquelas comidas da dona Isabel que matou o Che...que nojo!
- Todo mundo no portão galera, o Rodrigo tá cagando! Cagão! Cagão! Cagau! Gau! Au! Au! Au !

-Fia das puta, minhas lata!! Robáru mi´as lata!!! - gritava o Rodrigo.
Lá vinha o nosso cachorrinho, roçou a cabeça na perna de Rodrigo e depois sentou com ele pra ouvir. Trazia consigo uma costela que ganhou num churrasco ali na São Luís, dividiu com o Rodrigo. Este, muito atordoado, xingava todos que o olhavam, fincando agulhadamente os profundos olhos doídos e vivos, sempre ligados. Tinha a fama de louco, e era, como todos somos (mesmo que não levemos a fama). Carregava latas de tinta, das quais apenas os cachorros conheciam o seu preciosíssimo e misterioso conteúdo. Dormiram ali os dois na chuva. Acordaram com a gaita do afiador de faca e foram buscar pão. Como a padaria era longe, Rodrigo mandou o cachorro na frente:
- Vai! Voai! Ai! Ai!
Veio com o baguetão de mortadela na boca e entregou pro louco, abanou o rabo, lambeu e deu a pata. Brincou de ficar rolando e ofereceu a barriga pra coçar. Foram tomar banho na torneira do patiozinho de frente da cabeleireira da Vicente. Lamberam bem o pelo ensebado e liso e foram latir no mundo lá fora.
O cachorro refletia acerca dos homens, tachando-os de desorganizados e mal-educados:
(...)-Não quero morar em apartamentos, muito menos que recolham o meu cocô, como posso me comunicar assim? (...)
Sonhava em revolucionar a vivência dos cachorros com os homens, e planejava isso há muito tempo, desde quando viu a Revolução dos Bichos. Mas sabia que isso era Brasil, a beleza infinita e a possibilidade de comer muito bem, além de arranjar cadelas das mais variadas descendências nas ruas.
Rodrigo queria ver o pôr do sol, calcular o eclipse e carregar suas latas. O cachorro acompanhava-o na boa, brincando com as gurias, com os lixos, comendo bobagens...
Perturbavam-se pelos xingões e palavrões, eram mal vistos e mal quistos. Eram lixo. Sabiam das podres mentes do povo, conheciam até os envenenadores de comida. Ora, os mendigos eram mais vivos que o povo, ficavam mais fortes, adaptados pela imunidade social. Rodrigo tinha hábitos de vira-lata e os cães também eram a extensão anatômica do próprio Rodrigo. Conheciam e sofriam os mesmos sofrimentos, uns dos outros, mesclando-se na nobre função de latir ao povo.
Por onde passava, Rodrigo-cão desencadeava latidos todos os dias, iniciando uma reação em cadeia no quarteirão, depois no bairro, e mesmo lá pela Redenção alguns poodles também podiam ouvir o resquício, quando então respondiam ao chamado:
- Rodrigo cagão!! Ão, ão, ão, au ! Au ! Au!
Os cidadãos também eram cachorros, cadelas, mendigos, loucos, putos e putas, filhos-pais, produtos sociais, com suas próprias loucuras, latas, cheiros e poderes.
Rodrigo (sem caninos) e os seus cães caminhavam diariamente e faziam seus rituais pelas calçadas, praças, marquises, pontes e terrenos baldios. Eram, certamente, felizes no seu pensamento e livres nos seus atos, em qualquer palavra ou coisa feita. Ah...como gostavam de passar os tempos andando pelas ruas sem rumo, brincando de mendigar e soltar expressões e provérbios só compreendidos por eles mesmos. O cachorro não queria nada mais na vida além daquilo.
Num dia, de repente, no mesmo horário em que caía o sol atrás das ilhas do Guaíba, Rodrigo morreu e conseguiu, antes de desfalecer, num instante único na vida, canalizar sua riqueza e inteligência na loucura. Finalmente conseguiu sentar no banco da praça e, sem ser perturbado pelos homens, viu o eclipse junto com os seus cachorros, seus sonhos e suas latas.