O
cachorrinho saiu caminhando pela avenida, desviando das vans, pelos
vãos.Pensava
que voava, não ia por onde andava...
Deu uma
boa tratada no pelo, e foi pelos sacos de lixo, procurando rango. Foi
cheirando cus, e procurando alguém que o esperava
Os
cachorrinhos choravam no brique, detestando aquilo tudo
De olhar
tocar gemer e sair; sem comprar, sem levar, sem se dar conta.
Um
começou a latir pro Rodrigo loco lá na esquina,
O pastor
do delegado bradou daqui do meu lado,
Já era a
matilha toda da Santana falando bobagens:
-Olha o
Rodrigo loco, que mongolão!
- Ele
come aquelas comidas da dona Isabel que matou o Che...que nojo!
- Todo
mundo no portão galera, o Rodrigo tá cagando! Cagão!
Cagão! Cagau! Gau! Au! Au! Au !
-Fia das
puta, minhas lata!! Robáru mi´as lata!!! - gritava o Rodrigo.
Lá vinha
o nosso cachorrinho, roçou a cabeça na perna de Rodrigo e depois
sentou com ele pra ouvir. Trazia consigo uma costela que ganhou num
churrasco ali na São Luís, dividiu com o Rodrigo. Este, muito
atordoado, xingava todos que o olhavam, fincando agulhadamente os
profundos olhos doídos e vivos, sempre ligados. Tinha a fama de
louco, e era, como todos somos (mesmo que não levemos a fama).
Carregava latas de tinta, das quais apenas os cachorros conheciam o
seu preciosíssimo e misterioso conteúdo. Dormiram ali os dois na
chuva. Acordaram com a gaita do afiador de faca e foram buscar pão.
Como a padaria era longe, Rodrigo mandou o cachorro na frente:
- Vai!
Voai! Ai! Ai!
Veio com
o baguetão de mortadela na boca e entregou pro louco, abanou o rabo,
lambeu e deu a pata. Brincou de ficar rolando e ofereceu a barriga
pra coçar. Foram tomar banho na torneira do patiozinho de frente da
cabeleireira da Vicente. Lamberam bem o pelo ensebado e liso e foram
latir no mundo lá fora.
O
cachorro refletia acerca dos homens, tachando-os de desorganizados e
mal-educados:
(...)-Não quero morar em apartamentos, muito menos que recolham o meu
cocô, como posso me comunicar assim? (...)
Sonhava
em revolucionar a vivência dos cachorros com os homens, e planejava
isso há muito tempo, desde quando viu a Revolução dos Bichos. Mas
sabia que isso era Brasil, a beleza infinita e a possibilidade de
comer muito bem, além de arranjar cadelas das mais variadas
descendências nas ruas.
Rodrigo
queria ver o pôr do sol, calcular o eclipse e carregar suas latas. O
cachorro acompanhava-o na boa, brincando com as gurias, com os lixos,
comendo bobagens...
Perturbavam-se
pelos xingões e palavrões, eram mal vistos e mal quistos. Eram
lixo. Sabiam das podres mentes do povo, conheciam até os
envenenadores de comida. Ora, os mendigos eram mais vivos que o povo,
ficavam mais fortes, adaptados pela imunidade social. Rodrigo tinha
hábitos de vira-lata e os cães também eram a extensão anatômica
do próprio Rodrigo. Conheciam e sofriam os mesmos sofrimentos, uns
dos outros, mesclando-se na nobre função de latir ao povo.
Por onde
passava, Rodrigo-cão desencadeava latidos todos os dias, iniciando
uma reação em cadeia no quarteirão, depois no bairro, e mesmo lá
pela Redenção alguns poodles também podiam ouvir o resquício,
quando então respondiam ao chamado:
- Rodrigo
cagão!! Ão, ão, ão, au ! Au ! Au!
Os
cidadãos também eram cachorros, cadelas, mendigos, loucos, putos e
putas, filhos-pais, produtos sociais, com suas próprias loucuras, latas, cheiros
e poderes.
Rodrigo
(sem caninos) e os seus cães caminhavam diariamente e faziam seus
rituais pelas calçadas, praças, marquises, pontes e terrenos
baldios. Eram, certamente, felizes no seu pensamento e livres nos
seus atos, em qualquer palavra ou coisa feita. Ah...como gostavam de
passar os tempos andando pelas ruas sem rumo, brincando de mendigar e
soltar expressões e provérbios só compreendidos por eles mesmos. O
cachorro não queria nada mais na vida além daquilo.
Num dia,
de repente, no mesmo horário em que caía o sol atrás das ilhas
do Guaíba, Rodrigo morreu e conseguiu, antes de desfalecer, num instante
único na vida, canalizar sua riqueza e inteligência na loucura.
Finalmente conseguiu sentar no banco da praça e, sem ser perturbado
pelos homens, viu o eclipse junto com os seus cachorros, seus sonhos
e suas latas.